Nunca podemos dizer que não gostamos de algo ou de alguém sem termos tido uma experiência anterior que possa fundamentar a nossa argumentação contra determinado assunto.
No entanto, como todos os seres humanos, erráticos e pretensiosos, decidi contrariar o bom senso e criticar quem trata animais domésticos como se fossem membros da família. Era uma patetice pura e descabida, visto que não podemos confundir seres racionais e irracionais. Lógico, não? E também bastante comum numa sociedade oca e que trata animais, velhos e jovens como lixo.
Não me enquadrava nessa classe marginal de indivíduos que se afirmam pela força de poder e opressão sobre os que aparentam ser mais fracos. Simplesmente não tinha tido animais em casa, a não ser três canários, que adorava mas nos quais era incapaz de tocar. Gostava dos bichinhos, mas não passava a linha do bom senso que me tinham transmitido.
Acontece que, num belo dia, entrou magicamente na minha vida o cão mais pequenino e amoroso que alguma vez vira. Tive medo de lhe tocar, de machucá-lo e de me afeiçoar a ele. Mas a primeira impressão foi forte demais para a ignorar e apaixonei-me por aquele ser ainda muito tenrinho e indefeso que só queria mimos e brincadeira. Não me conhecia de lado nenhum e criou logo empatia comigo. Atirou-se com sofreguidão para os meus braços, fez-se às minhas carícias e encheu-me de mordidelas e lambidelas inocentes, típicas de um cachorrinho com um par de meses de vida.
Não sei o que se passou comigo, o que mudou, mas deu-se o clique do amor e da ternura. Era um bebé que ali estava, disposto a dar tudo e a fazer-me entregar-lhe todo o mimo que podia.
Era tão fofo! Não o digo só porque tinha o pêlo ainda muito macio, mas pela inocência do seu olhar meigo. Era um animal, mas tinha o dom de nos cativar pela sua “humanidade”. Tudo nele o tornava humano: o carinho, a fidelidade, a devoção a quem mostrava o seu lado bom e, ao mesmo tempo, todo aquele seu jeito atrevido e arisco, que roía tudo o que apanhava pela frente, fazia chichi em cada canto, como se estivesse a marcar território. Além disso, gostava de pessoas como se fossem da sua espécie e dava o corpo ao manifesto na hora de defender quem tomava conta dele, mesmo sendo “cinco tostões de cão”.
Ele foi crescendo e amadurecendo. Já não está tão dependente de carinho como em bebé, tal como nós, que vamos criando o nosso território. Já não é preciso dar-lhe com o jornal por fazer asneiras nem ralhar-lhe por ser tão indomável. Continua a ser livre e com vontade própria, mas já sabe distinguir o bem do mal e os bons dos maus e não dá confiança a quem não merece.
Apercebe-se de tudo, apesar de parecer despistado até dizer chega. É corajoso e um verdadeiro homenzinho, mas com um menino lá dentro. Adora brincar, ser desafiado e passar horas a correr pelo jardim atrás dos malditos gatos que teimam em invadir o território dele. Ou isso ou vir arranhar-nos as pernas numa tentativa de nos por a mexer pela casa enquanto ele se mostra incansável e insaciável no que toca a loucura desenfreada.
Já foste pai meu menino lindo. Estás um homem adulto. Porém, continuas a rebolar no chão para te fazer festas na barriga, a correr para os meus braços sempre que me vês chegar como se já não me visses há anos. És o meu mimalhinho. Adoras estar no meu colo a dormir e a sentir os meus carinhos. E és o cão mais fotogénico da história. Vês uma câmara e pões-te logo em pose. Nasceste para ser um galã de Hollywood. És um verdadeiro príncipe.
E tu, seu ser pequenino e safado, mudaste-me tanto a visão sobre os animais de quatro patas! Tu beijas-me até me faltar o ar, lambes-me a cara, o nariz, as orelhas. Gostas de dormir na cama com pessoas, gostas de ir connosco para todo o lado. Se vamos para a cozinha, vais atrás, se vamos para a casa de banho, vais atrás.
O método para te fazer sair a bem é abrir a torneira. Tu abominas água. É um tormento dar-te banho! Sais depois, casa fora, a rebolar, a esfregar-te no tapete da varanda, a molhar tudo! Patinas na tijoleira e fazes-nos rir tanto que nos esquecemos que temos muito para limpar em seguida! És o rei da ternura e da aventura. És tão inteligente que sabes o caminho para casa, levemos-te nós para onde for. Como quando fugiste da casa onde te fomos levar para acasalares com a mãe dos teus filhos e tu decidiste que não te apetecia ficar lá e arranjaste maneira de ludibriar os donos e fugir por um sítio quase impossível. Puseste-nos a todos de coração nas mãos e a rezar para não te termos perdido para sempre. E, passado pouco tempo, cá estavas tu de regresso à base, encharcado e a tremer de frio. Atravessaste um temporal como há muito já não havia memória e enfrentaste os carros que passavam numa das avenidas mais concorridas e perigosas para os peões. Como é que tu, meu cão minúsculo, conseguiste escapar ileso desta aventura? Com tanta chuva, vento, carros, como é que encontraste o lar sem um único arranhão? Deves ser especial até mesmo para Ele, pois passas despercebido pelo teu tamanho e serias atropelado pela certa!
Gosto de ti como se fosses meu filho. Verdadeiramente. Fazes-me ter a certeza de que os animais conseguem superar as pessoas em muitos aspectos. Fazes de mim uma mulher especial, mesmo quando estou tão mal que sé me apetece desaparecer. Ninguém tem o poder que tu tens sobre mim. Fazes-me esquecer o frio, o calor, a fome, a sede, a tristeza. Só te falta falar! Mas não precisas dessa habilidade para ser especial. Já o és. Tudo o que tens para me dizer, dize-lo através do que fazes. Os teus olhos transmitem o que preciso de sentir. Compartilhas comigo a dor e a alegria incomensurável.
Por tudo o que és, pela transformação que comandaste em mim e pelo amor que me dás e me fazes sentir, és o orgulho e uma das razões de viver desta tua dona emprestada. Adoro-te!
Um comentário:
Um texto fantástico que como todas as boas obras de arte são provocantes e igualmente deliciosas!Nas primeiras linhas apeteceu-me bater-te pela forma tão fria como antes vias o "cão", o meu animal preferido, depois consegues transformar essa visão mais distante numa descrição brutal daquilo que podemos sentir quando vivemos o nosso dia acompanhados de tão maravilhosos animais.Os meus sinceros parabéns!!!Muito bom!!!!
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